Entre o egoísmo e a generosidade

Por Juliana dos Santos Soares

04/10/2018

 

Egoismo e generosidade

 

Recentemente eu publiquei um texto aqui, falando sobre autoconceito e a integração de polaridades em nós. A partir dele, fiquei observando uma certa polaridade muito presente nas falas das pessoas em psicoterapia e nas vivências de grupo: de um lado, um comportamento impositivo, de quem decide tudo e faz a sua vontade valer e, de outro, o comportamento de “deixar-se de lado”, olhar o lado das outras pessoas primeiro, com dificuldades de se expressar e se impor. Hoje escrevo sobre esse par de opostos e sua dinâmica em nós: o egoísmo e a generosidade.

Flávio Gikovate, psiquiatra brasileiro falecido recentemente, trabalhou muito com esse tema. Em seu livro “O mal, o bem e mais além: egoístas, generosos e justos”, ele faz uma síntese de seus estudos a respeito. Como admiradora do seu trabalho, recomendo a leitura do livro e apresento um breve vídeo em que ele expõe o assunto:

 

Gikovate esquematiza as características de egoísmo e generosidade dessa forma:

O pêndulo da justiça, de Flávio Gikovate

 

Para ele, nenhuma das duas qualidades está certa ou errada. Embora popularmente tenhamos a tendência a ver a generosidade como virtude e o egoísmo como defeito, nessa dinâmica relacional as duas se complementam e, justamente por isso, são vistas como algo prejudicial. Egoístas e generosos/as admiram-se mutuamente, atraem-se em seus relacionamentos, que acabam se formando não como parceria, mas como um jogo de poder. Pessoas generosas, para o autor, têm maior autonomia e maturidade, por saberem lidar melhor com frustrações e situações emocionais intensas, mas não cuidam bem de si mesmas. Dedicam-se a cuidar das outras, e com isso acabam exercendo poder sobre elas. Por outro lado, pessoas predominantemente egoístas acabam sendo admiradas por seu jeito “franco”, por se expressarem com mais desenvoltura e pela liberdade que aparentam ter. Muitas vezes, na relação com pessoas generosas, elas acabam “dando as cartas”, impondo sua vontade, e exercem poder dessa maneira.

Gikovate aponta a saída para esse impasse como a justiça:

Essa forma singela de pensar a questão moral corresponde a atribuirmos aos outros os mesmos direitos que atribuímos a nós; mas também atribuímos a nós direitos iguais aos dos outros! (…) A virtude seria privilégio das pessoas justas, daquelas que não são nem egoístas nem generosas” (Gikovate, 2005, pp. 117-118).

 

Mais além…

Gostaria de, modestamente, acrescentar alguns outros pontos nessa exposição, partindo de meus estudos em Psicodrama e da minha prática clínica.

Primeiro, penso que ao abordarmos esse tema, estamos falando de outros dois polos paralelos: a autonomia e a dependência. Ambos fazem parte, pelo menos potencialmente, de todas e todos nós. Nascemos dependentes, e na medida em que recebemos cuidados enquanto bebês e crianças , aprendemos como é precisar do outro. E, conforme vamos nos desenvolvendo, treinamos a autonomia, o não precisar. Isso é crescimento. Estar nos relacionamentos com saúde envolve saber dosar, de acordo com o momento, o precisar e não precisar, o receber apoio e o apoiar. Eu já escrevi sobre esse tema no texto “O amor e o equilíbrio entre dar e receber” (para ler, clique aqui).

O problema, e aqui entra o segundo ponto, está em nos enrijecermos em uma ou outra forma de relacionar: só (ou quase só) saber receber (o que Gikovate caracteriza como egoísmo) ou só (ou quase só) saber doar-se (a generosidade de Gikovate). Essa falta de flexibilidade em nossas condutas é o que J. L. Moreno chamou de conserva cultural. Para ele, uma boa saída para essa questão é o treino da Espontaneidade, que, conforme eu já escrevi nesse texto aqui, é a capacidade de dar uma resposta adequada a uma nova situação ou uma nova (e adequada) resposta a uma situação antiga. Envolve tomar consciência de nossas conservas. Envolve uma compreensão mais profunda sobre a que nos serve esse padrão repetitivo. E envolve uma aprendizagem consciente e corajosa, de experimentar dar respostas diferentes a um dado tipo de situação, aumentando nosso repertório de ações possíveis em nossas relações.

É tarefa complexa. Um bom trabalho de psicoterapia pode ajudar muito!

Mas cabem aqui, de forma menos profunda, algumas dicas:

Para quem se reconhece como generoso ou generosa:

Questionar a saúde do seu comportamento de se doar  muito. Abrir mão da sua “bondade”, da imagem de alguém “superior”. Descer um pouco, olhar para suas vulnerabilidades. Reconhecer as próprias necessidades e cuidar de atendê-las. Aprender a pedir e a receber ajuda (não é exigir!). Abrir mão da vaidade.

Para aqueles/as que Gikovate chama de egoístas:

Aprender a olhar para a outra pessoa. A ouvi-la. Sair um pouco do seu umbigo. Aprender a contribuir. A se alegrar com a alegria do outro. A se doar. Desenvolver tolerância à frustração. Aprenderem a se cuidar, sem depender tanto do outro lhe dar.

Em todos os casos, temos muito a ganhar ao alargar nosso olhar para nós mesmos/as. Penso que é por aí que o Gikovate propõe a justiça: o podermos transitar entre cuidar de nós e dos nossos interesses e cuidar do outro com quem nos relacionamos. Nossa saúde emocional agradece. E nossas relações também.

4 comentários em “Entre o egoísmo e a generosidade

  1. Ótimo texto! Tive a oportunidade de achar o livro do autor q fala sobre isso na bienal, e foi um dos q mais mudou minha vida expressivamente. Porém, no meu ponto de vista, pessoas egoístas tbm são reféns da vaidade, visto q as mesmas só olham para si mesmas, e acham q sempre estão certas, ignorando até msm um outro ponto de vista q possa estar “mais” certo q o seu

    1. Oi, Daniel. Que bom que gostou do texto!
      Sim, sua colocação faz todo o sentido. As pessoas tidas como egoístas também sofrem de vaidade, de uma forma bem diferente das generosas. Muitas vezes, não conseguem nem ver o seu egoísmo, refletem pouco sobre a sua postura nas relações.
      Obrigada por contribuir e ampliar o diálogo sobre o tema.
      Um abraço!

  2. Egoistas justificam seus abusos como: “Eu preciso me amar (porque os outros nao me amam) ”
    costumam se achar vítimas, porque estao “dando mais do que recebem”
    O que eu dou é Ouro, o que eu recebo é prata!
    Sou generosa, até meu limite: quando fica claro que estou sendo otária (num jogo de exploracao )!

    1. Obrigada por compartilhar suas reflexões a partir do texto, Miriam!
      Realmente é importante termos atenção á maneira como nos relacionamos.
      Um abraço!

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