Individualidade, conjugalidade e o fim do amor

Por Juliana dos Santos Soares

15/12/2020

 

Este texto dá continuidade a Um olhar para os fins de relacionamentos, em que buscávamos desenvolver reflexões sobre uma forma mais saudável e amorosa de viver a separação. Aqui, a ideia é aprofundarmos um pouco no autocuidado nas relações amorosas, inclusive no momento do fim.

Em uma Live com a querida colega e amiga Ana Martins[1], em que tratávamos desse tema, falávamos sobre a importância de lembrarmos que há vida após o relacionamento, que podemos viver sem essa pessoa, quando alguém nos perguntou, nos comentários: “Mas essa certeza de que se vive sem a pessoa não nos deixa mais egoístas no relacionamento?”. E é essa pergunta que vou aproveitar, aqui, para organizar as reflexões que tecemos naquela conversa.

Vamos falar sobre egoísmo e generosidade, sobre cuidar de si e cuidar do outro e da relação. Vamos olhar para os conceitos de individualidade e conjugalidade nas relações amorosas. A individualidade se refere a tudo o que diz respeito ao indivíduo, à pessoa em sua existência, independentemente de seus vínculos[2]. É diferente de individualismo, que é a exaltação da individualidade em prejuízo das relações (sejam elas de casal ou de qualquer tipo)[3] – algo mais próximo do egoísmo. E a conjugalidade é o que diz respeito à relação conjugal, ao vínculo em si.

Ainda vivemos nossas relações com grande influência do ideal de amor romântico, sobre o qual já escrevi em tantos textos por aqui. Esse modelo de amor traz consigo a ideia de “almas gêmeas” ou “metades da laranja”, como se fôssemos seres incompletos que procuram se completar no encontro com a pessoa amada. O foco está muito na outra pessoa, colocando o relacionamento num lugar de dar sentido à nossa vida. E quando se dá o encontro amoroso, é como se houvesse uma fusão entre as pessoas. A individualidade fica em segundo plano. Muitas vezes, esquecida. Se sou uma metade e me torno inteira quando estou em uma relação, não faz sentido viver sozinha/o. Mas esse ideal já tem sido bastante questionado de um tempo para cá, o suficiente para entendermos que ele é apenas um modelo, construído socio-historicamente, estando longe de ser o melhor modelo ou o “jeito certo” de vivermos nossas relações amorosas.

Vivemos em um tempo em que nossa individualidade é exaltada. Pesam, nesses nossos tempos líquidos – termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman para se referir à pós-modernidade – valores como a liberdade de escolha e um olhar (muitas vezes exagerado) para nosso bem-estar e felicidade. Digo que esse olhar pode ser exagerado pelo risco que corremos de, ao olhar muito para nós mesmos, nos esquecermos de olhar para o outro. E então a valorização da individualidade pode, sim, se transformar em individualismo e egoísmo. Mas, pelo medo do exagero, não podemos fugir da cultura em que vivemos, fazendo de conta que não nos importamos com nossos interesses e desejos. Proponho que pensemos nos relacionamentos amorosos de uma forma que integre a individualidade e conjugalidade, o olhar e cuidado para si e para a relação.

 

Entre a individualidade e a conjugalidade

Ao invés de pensarmos nas pessoas envolvidas em uma relação como metades buscando complementação, vamos pensar em pessoas inteiras (incompletas, porque isso é da natureza humana, porém inteiras) que se encontram e constroem uma relação.

Recorro aqui a uma imagem que uso muito em psicoterapia: aquela dos conjuntos que aprendemos na matemática e da operação de intersecção. Pensemos em dois conjuntos distintos, A e B. A intersecção entre eles é o conjunto formado pelos elementos que pertencem a A e a B, ou seja, o que eles têm em comum. Assim, também podemos pensar em duas pessoas distintas (pessoa A e pessoa B), e quando elas se relacionam passam a ter coisas em comum, projetos comuns, que são o correspondente à intersecção entre os conjuntos. É a conjugalidade.

 

Perceba, aqui, que não se trata de uma fusão entre as duas pessoas (ideia muito alimentada no ideal de amor romântico). Pelo contrário, existe uma parte de A que não se mistura com B e vice-versa (a individualidade é preservada), e entre as duas há o que é comum. É como se existissem, agora, três entes: a pessoa A, a pessoa B e o relacionamento, a conjugalidade em si, construída e alimentada pelas duas[4].

Com essa imagem em mente, proponho que possamos repensar o conceito de egoísmo no relacionamento, quando se cuida da própria individualidade. Ao invés de pensar em si e somente em si, esse autocuidado pode estar integrado ao cuidado com o outro e a relação. Afinal, enquanto possibilidade, quanto mais forte e cuidada por si mesma está uma das pessoas nesse casal, menos ela cobra da outra pessoa que lhe faça feliz e cuide de feridas que lhe são próprias, e mais afeto e cuidados ela pode colocar no projeto comum. Mas perceba, isso é uma possibilidade, tudo depende de um exercício consciente e consistente de equilibrar o cuidado de si e o cuidado do outro. É algo complexo, que rende muitas e muitas outras reflexões.

 

E o fim do amor?

As duas pessoas saem da relação modificadas pelo que construíram e viveram juntas

Para terminar, pensemos no fim a partir dessa perspectiva. É claro que os fins de relacionamento são tristes, e continuam sendo. Envolvem dores que levam tempo para serem elaboradas e curadas. Mas, se temos um olhar que preserva a individualidade enquanto estamos em uma relação, fica mais fácil lembrar que nossa vida não se confunde com a da outra pessoa. Que vai doer se separar, desfazer os projetos comuns, vamos viver um luto, vamos nos despedir não apenas dessa pessoa, mas de quem éramos nessa relação. Mas saímos inteiras/os. Muitas vezes feridas/os, mas inteiras/os. Passado um tempo, podemos perceber as modificações que essa relação fez em nós. O quanto crescemos. O que carregamos a mais na nossa bagagem de vida. As marcas que, junto com tudo o que já tínhamos vivido, passam a nos constituir. E talvez seja possível olhar com gratidão para essa história, pelo que ela nos trouxe. Aceitar o fim. E, ao imaginar essa pessoa, poder dizer: “Você faz parte da minha história”.

 

[1] Ana é psicóloga, psicodramatista e contadora de histórias. Essa Live foi transmitida pelo Instagram no dia 17/11/2020. Está disponível no IGTV do Ser em Relação e também no Youtube. Clique aqui para conferir.

[2] “Característica ou particularidade do que é individual; qualidade daquilo que está presente com o indivíduo” – https://www.dicio.com.br/individualidade/

[3] “Tendência de quem pensa somente em si próprio; egoísmo, egocentrismo” – https://www.dicio.com.br/individualismo/

[4] Esse esquema também poderia ser usado, com mais complexidade, nas relações que envolvem mais de duas pessoas.

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