Cisne negro e a integração de polaridades

Por Juliana dos Santos Soares

22/06/2011

Só temos consciência do Belo quando conhecemos o feio.
Só temos consciência do bom, quando conhecemos o mau.
Portanto, o Ser e o Existir se engendram mutuamente.
O grande e o pequeno são complementares.
O alto e o baixo formam um todo
O som e o silêncio formam a harmonia.
O passado e o futuro geram o tempo.
Eis porque o sábio age pelo não-agir e ensina sem falar.
Aceita tudo e não fica com nada.
O sábio tudo realiza – e nada considera seu.
Tudo faz – e não se apega à sua obra.
Não se prende aos frutos da sua atividade.
Termina a sua obra, e está sempre no princípio.
E por isso a sua obra prospera”.

Lao Tsé

Muito já se escreveu e publicou sobre o filme Cisne Negro, do diretor Darren Aronofsky (2010). Não sem motivos – é um filme forte, impactante, mobilizador, desses que não passam sem um comentário realmente.

Aqui não vou escrever sobre a estrutura psíquica da protagonista ou a sua relação com a mãe, temas muito fortes no filme e muito explorados nas análises a que tive acesso. Falarei de um outro ponto, para mim muito significativo: as polaridades presentes em Nina. Essencialmente somos um conglomerado de forças que se relacionam: luz e sombra, força e fragilidade, autonomia e dependência, amor e ódio, dentre tantas outras. Tudo isso faz parte de cada um de nós. O saudável é que esses “lados” estejam integrados, o que significa sermos capazes de reconhecer e integrar nossas polaridades. Quando não é assim vivenciamos algumas “partes” nossas e negamos outras que consideramos vergonhosas ou condenáveis, o que gera um conflito interno.

Assim é com Nina Sayers, a protagonista de Cisne Negro vivida por Natalie Portman. Bailarina dedicada, obcecada com a perfeição, tem 28 anos mas aparenta ser uma adolescente com seus bichinhos de pelúcia e caixinha de música no quarto. A mãe a chama de sweet girl (doce menina) durante quase todo o filme e ela usa predominantemente branco, cinza e rosa bebê. Onde estão a agressividade, a sensualidade, a sedução, a intensidade de Nina? Ela é extremamente controlada.

Até que é escolhida (e corre atrás disso!) pra representar a Rainha Cisne numa nova montagem do Lago dos Cisnes de Tchaikovsky da companhia de balé em que dança. A Rainha Cisne deve personificar Odette, o Cisne Branco – pura, virginal, metódica – e Odile, o Cisne Negro – livre, sensual, feiticeira que seduz o príncipe apaixonado por Odette. Thomas Leroy (Vincent Cassel), o diretor do balé, tem certeza de que Nina é perfeita para viver o Cisne Branco, pois é a polaridade com a qual ela se identifica, mas se entregar ao Cisne Negro torna-se o grande desafio da bailarina, com ares de pesadelo.

O próprio Thomas passa a incitar a sensualidade em Nina e ela passa a se deparar com aspectos temidos seus, muitas vezes projetados em Lily (Mila Kunis), sua antagonista, e em Beth (Winona Ryder), a bailarina aposentada a quem Nina está substituindo e que deseja ser. Lily é livre, apaixonada, leve, intensa – a personificação do Cisne Negro, aquilo que Nina precisa encontrar dentro de si para desempenhar o seu papel – e sempre veste preto, opostamente a ela. E Beth, em uma das cenas, é descrita como alguém interessante de se observar, porque tudo o que faz vem de dentro, de impulsos profundos. Num determinado momento, a fala de Thomas para Nina é: “Não tão controlada! Seduza-nos! Ataque!”, e num outro momento o mesmo diretor lhe diz que a perfeição não significa só controle, mas se soltar; surpreender a si mesma e à platéia.

Na medida em que vivencia alguns aspectos dessa outra polaridade, observamos a aparência física de Nina se modificar: ela passa a usar mais a cor preta, e até o coque no seu cabelo – no início do filme ajeitado com perfeição – num dado momento está uma bagunça, reflexo dos fortes conflitos que têm lugar dentro dela. Nina é tão rigidamente cristalizada no “Cisne Branco”, e a outra polaridade está tão reprimida nela, que para que a última apareça é travada uma verdadeira luta interna, com delírios e alucinações, até a morte do Cisne Branco para que o Cisne Negro possa se manifestar – aliás de forma intensa e belíssima no ato em que reina no balé.

Mas pode ser diferente. Cotidianamente, no consultório, tenho contato com os conflitos entre polaridades: pessoas que estão acostumadas a se mostrar – para o outro e para si mesmas – muitos fortes, lidando mal com sua fragilidade e então ela aparece no corpo, em dores e outros sintomas físicos. Outras vezes, pessoas que seduzem o tempo inteiro, vivenciando a sua parte bela e social, e que sofrem ao se deparar com a solidão, ou melhor, com a solitude – o estar consigo, encarando tudo o que têm, de belo e de comum.

Lidar com essas polaridades usualmente gera algum nível de conflito e dor, já que inclui deixar vir à luz aspectos que estavam escondidos e negligenciados. Entretanto, fazer esse movimento não significa ter que excluir o que antes estava à vista, como Nina faz com o Cisne Branco – dessa forma apenas “viraríamos o jogo”, continuando a permitir que apenas uma das faces da moeda seja vista, a que antes estava escondida. O “jogo” do crescimento verdadeiro é outro: o interessante e saudável é que todas as polaridades possam ter espaço dentro de nós, que possamos nos apropriar e reconhecer tudo aquilo que somos, buscando a integração e o equilíbrio. Esse é o caminho do autoconhecimento autêntico, e quanto mais nos conhecemos mais saudáveis e felizes podemos ser.

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