Por Juliana dos Santos Soares
29/07/2011
Hoje compartilho um texto que não é meu, mas do escritor mineiro Rubem Alves, a quem muito admiro. “A Pipoca” é um texto maravilhoso, que de forma simples fala de coisas muito essenciais à nossa alma – Rubem Alves é sempre assim. Está publicado no livro “O amor que acende a lua”. Já o compartilhei com muitos clientes em sessões de Psicoterapia, em momentos que achava propícios ao seu processo de crescimento. Acredito que este seja um bom momento para compartilhá-lo com todos. Convido-os a deixarem suas impressões e comentários.
“A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-mo a algo que poderia ter o nome de ‘culinária literária’. Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como ‘chef’. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo – porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela.
Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos, são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida…). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblê baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblê…
A pipoca é um milho mirrado, sub-desenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o Candomblê? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa – voltar a ser crianças!
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão – sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! – e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. ‘Morre e transforma-te!’ – dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da UNICAMP, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas ‘piruá’ é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: ‘Fiquei piruá!’ Mas acho que o poder metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: ‘Quem preservar a sua vida perde-la-á.’ A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira”…
Obrigado pelo texto. É realmente impactante. Gostei muito!
Fico feliz que tenha gostado, Marcos!
Rubem Alves tem uma sabedoria que merece ser partilhada.
Obrigada pelo seu retorno!
Texto maravilhoso! Obrigada por compartilhar.
Que bom ter seu retorno, Giulia!
Seguimos. Um abraço!
Bastante reflexivo. Muito legal. Obrigada por compartilhar ❤️☺️
Obrigada também, Geici, pelo retorno.
Um abraço!
Nossa !!! Como fiquei maravilhada com esse texto, me fez refletir bastante e descobri que quase ia sendo piruá, mas com essa fase do fogo, virei pipoca💪🏻👏🏻🙏🏻😍
Que legal, Aline.
Poder passar pelo fogo e desabrochar.
Obrigada por compartilhar!
Este texto é maravilhoso para uma explicação religiosa. Uso na catequese.
Muito legal, Marli.
O interessante de textos que usam metáforas é que podemos usá-los de diversas formas, né?
Muito rico.
Um abraço!
Texto maravilhoso!!! Sempre que se lê nós serve de inspiração. 👏🏻👏🏻👏🏻
muito obrigado por partilhar dessa obra prima!!!
Belíssima reflexão, mas quando eu era criança e passava as férias na roça com meus pais e tios os piruás ainda tinha uma grande serventia. Iam direto para o pilão e depois de bem socado e misturado com açúcar se transformava em uma deliciosa paçoca de piruá. Nossa! como era deliciosa. Mas raríssimas pessoas conhecem paçoca de piruá até mesmo aqui na região. Apenas um comentário a título de conhecimento.
Que legal, Josilene! Eu mesmo não conhecia. Obrigada por contribuir!
Eu já havia lido este texto há alguns anos atrás e desde então achei muito reflexivo. Mas o momento que vivo agora me fez ir em busca deste novamente para que melhor eu pudesse me entender. Obgd por compartilhar este texto belo e profundo.
Que legal Edson!
Fico muito contente que tenha chegado aí de uma forma boa.
Um abraço!
Uau amei vou se me permitir vou usar no encontro de mulheres na minha igreja boa reflexão…
Que bom que gostou, Maria Nilma!
E que bom que o texto e as reflexões que ele gera podem chegar a mais pessoas, especialmente em grupos.
Viva Rubem Alves!
Muito linda a sua reflexão, o texto de Rubem Alves, a imagem macia da pipoca e o piruá duro que se nega a mudar. Penso em utilizar esse texto com uma pessoa muito amada, já em idade bem avançada, que se recusa a se abrir para a vida, endurecida nas suas crenças e crendices. Obrigada de coração.
Que bom ver o texto chegando aí e gerando boas repercussões, Siomara.
Vamos junto nessa jornada.
Obrigada pelo retorno.