Por Juliana dos Santos Soares
09/06/2020
Introdução importante: Esse texto é o terceiro de uma série, escrita a partir da roda de conversa online “O amor que aprendi vem dos meus pais”: amor e vivência familiar, realizada em maio de 2020. A primeira parte está aqui, e nela eu explico um pouco sobre as dinâmicas relacionais de dependência, autonomia e compartilhar nos nossos relacionamentos, e sobre como elas são desenvolvidas na nossa história. No segundo texto, que está aqui, eu trago uma reflexão sobre o que nós podemos fazer com essa informação sobre os cachos de papéis (clusters) na nossa vida de modo mais pessoal, voltado para nossos relacionamentos próximos – especialmente os afetivo-sexuais.
E nesse texto eu te convido a refletir um pouco mais sobre essa dinâmica das relações, indo além dos relacionamentos de casal, mas como algo com que lidamos em nossas relações sociais. E sobre como o individual e o social se influenciam de forma intensa.
Primeiro ponto: Vivemos em um mundo de desigualdades sociais
Nossa organização social não incentiva relações simétricas, regidas pelo compartilhar. Pelo contrário, vivemos numa sociedade extremamente competitiva, marcada por privilégios de gênero, raça e classe que conduzem a muitos tipos de opressão e violência. Não se trata apenas de Brasil, mas de mundo, embora tenhamos muitas particularidades nossas. Coletivamente, queremos tirar vantagem em tudo, passando o outro para trás. Nossos sistemas de poder levam a um desvirtuamento do exercício natural do mesmo, em que quem ocupa posições de autoridade deveria cuidar e proteger as camadas mais vulneráveis – pelo contrário, o que mais observamos é um uso do poder em benefício próprio, com o abandono das responsabilidades coletivas. Tudo isso configura um estado de adoecimento das relações sociais, em que as posições de autonomia e dependência são vividas de modo engessado (sem permitir mobilidade social) e desrespeitoso.
Segundo ponto: Vivemos em um mundo regido pelo patriarcado
Continuo olhando para as desigualdades sociais, porém de forma mais específica para as questões de gênero. Os relacionamentos heteroafetivos, embora não sejam o único modelo de relação afetivo-sexual que vivemos (e não necessariamente o mais saudável), acabam sendo naturalizados como referência de relacionamentos amorosos. Numa cultura regida pelo patriarcado, em que é “normal” considerar homens superiores às mulheres, é muito difícil viver uniões em que dar e receber estejam em equilíbrio. Isso leva aos tristes e inúmeros casos de violência de gênero a que assistimos cotidianamente. E influencia todas as relações, estejam elas mais ou menos próximas dos casos que viram notícia.
Terceiro ponto: Prezamos pela autossuficiência – “Cada um por si”
Quando falamos sobre as dinâmicas de dependência e autonomia, queremos reforçar que esses lugares relacionais são de todas/os nós, seres humanos, e dependendo da situação que estejamos vivenciando uma ou outra se fará mais forte. A dinâmica do compartilhar integra as outras duas, permitindo um equilíbrio entre dar e receber cuidados. Um “exagero” para qualquer dos lados (pessoas fixadas na dependência ou na autonomia) diz de um funcionamento problemático.
Pois bem, na nossa cultura nós não costumamos ver o exagero da autonomia – a autossuficiência – como um problema. O excesso de dependência sim, é associado a fraqueza, mas a autossuficiência (que não abre espaço para as vulnerabilidades, que não permite que a pessoa receba cuidados e portanto valorize a força das outras pessoas ao seu redor) é vista como um valor; a independência é uma meta a ser alcançada. O que acredito ser algo muito enganoso, pois nós precisamos umas/uns das/os outras/os para viver bem – o que é diferente de depender de uma forma adoecida. E associar uma característica a qualidade e outra a defeito acaba nos distanciando de um equilíbrio saudável.
Unindo os pontos…
Se levamos em conta todo esse contexto, é fácil concluir que não temos modelo social suficiente para construirmos relações simétricas saudáveis. E que os desafios que encontramos na nossa vivência de amor mais pessoal e individualizada não são tão individuais assim.
Ou seja, se queremos viver o amor de forma mais feliz e equilibrada, não basta “lidar com nossos próprios problemas” relacionados a ele. Tão fundamental quanto isso é buscarmos construir, coletivamente, um mundo que promova relações mais justas, com equidade de direitos e respeito pelas nossas diferenças. E isso é tarefa árdua mas possível, e é de todas e todos nós.