O amor que guardamos, o amor que vivemos

Por Juliana dos Santos Soares

09/06/2020

 

 

Introdução importante: A parte 1 desse texto está aqui. Eu aconselho que você a leia primeiro porque nela eu explico um pouco sobre as dinâmicas relacionais de dependência, autonomia e compartilhar nos nossos relacionamentos, e sobre como elas são desenvolvidas na nossa história.

Depois dessa introdução, o objetivo desse texto é refletir sobre o que nós podemos fazer com essa informação sobre os cachos de papéis (clusters) na nossa vida, num nível pessoal, voltado para nossos relacionamentos mais próximos.

 

Trabalho interno

Podemos e devemos nos trabalhar intimamente, a fim de ter relações mais interessantes. Identificar como é o próprio trânsito entre as dinâmicas relacionais é de grande valor. Aqui, cabe uma observação significativa: o ideal não é sair de um funcionamento para ir para outro (a maioria das pessoas que acessam essas informações persegue a dinâmica do compartilhar como ideal). Os três cachos de papéis nos são úteis, em diferentes circunstâncias e relações. Então, vejo como mais interessante sabermos transitar entre as três dinâmicas, de acordo com o que é mais adequado para a situação, e proponho algumas questões para estimular nossas reflexões:

Sobre o cluster um:

Como você lida com a sua vulnerabilidade? Aceita suas necessidades como válidas? Consegue pedir ajuda e recebê-la, quando ela vem? Consegue pedir ajuda e lidar com a frustração, quando ela não vem? Sente-se capaz de receber cuidados, da maneira como as outras pessoas podem te cuidar? Tem uma relação saudável com o receber ajuda e/ou cuidados? Ou associa isso a algum tipo de humilhação? Pode se dar um tempo (ao invés de se cobrar) quando não se sente capaz de realizar alguma coisa?

Sobre o cluster dois:

Como você lida com a sua autonomia? É capaz de sentir a força que tem? Tem consciência do que é capaz de realizar na sua vida, mesmo com suas limitações? Consegue passar adiante essa potência? Cuidar das pessoas à sua volta quando elas precisam de ajuda, de forma respeitosa a elas?

Sobre o cluster três:

Como você lida com as suas relações com seus pares, onde não há hierarquia? Sente-se confortável com essa situação de não haver uma pessoa com mais poder do que a outra? Ou acaba evocando uma competição, pra ver “quem pode mais”?

 

A relação com a própria família

Olhar para essas dinâmicas relacionais nos remete a explorar nossos primeiros vínculos familiares, com pai, mãe e irmãs/os (ou substitutos). É muito importante fazer isso sem julgamentos. Nossas/os familiares certamente fizeram por nós o melhor que podiam (não importa as circunstâncias de cada família, elas/es nos deram o melhor possível), e o que recebemos nos foi suficiente para chegarmos até aqui. Possivelmente não é o suficiente para amarmos de forma madura, porque nós recebemos isso enquanto crianças, e precisamos crescer, integrar essas formas de amor no nosso ser adulto, para viver o amor como par, numa relação horizontal, com equilíbrio entre dar e receber. Trata-se de receber profundamente o amor que vem da nossa família, com gratidão, e passar adiante como pessoas crescidas. Não é fácil. Mas é possível. A Psicoterapia pode ajudar.

 

Ideal de amor

E ainda uma questão que acho fundamental: que tipo de relação você quer na sua vida? Aqui, estou partindo do pressuposto de que relações de casal saudáveis são aquelas que prezam pela simetria de papéis, com paridade de forças e direitos. Mas cada pessoa tem seu ideal de amor, né?

 

Trazendo um pouco de arte para a conversa

Gosto de trazer arte para nossas reflexões. Para esse assunto, chamo o Nando Reis com sua canção “Pra você guardei o amor”. O vídeo abaixo é uma rica oportunidade de ver o criador falando da sua obra, em que ele expõe a dor de não conseguir viver o amor de forma madura, e a beleza de se trabalhar internamente para vivê-lo de forma mais plena, livre e feliz. Assista:

 

Destaco alguns trechos da letra que acho que dialogam bem com os pontos que levantei até aqui:

Pra você guardei o amor que nunca soube dar
O amor que tive e vi sem me deixar sentir
Sem conseguir provar
Sem entregar e repartir

É claro (e ele comenta isso no vídeo) que há uma dificuldade de vivenciar o amor.

Pra você guardei o amor
Que aprendi vem dos meus pais
O amor que tive e recebi
E hoje posso dar livre e feliz…

Há um amor que ele recebeu dos pais, mas que não sabia dar até um certo momento. Depois, amadurece e consegue deixar fluir, livre e feliz.

Voltando ao que eu dizia lá encima, todas e todos recebemos amor dos nossos pais (novamente, cada um/a com suas particularidades). Mas nós precisamos desenvolver esse amor em nós, para que possamos vivê-lo como pessoas adultas, junto a parceiras/os adultas/os também.

Para fechar, quero transcrever o tocante depoimento final do Nando, com uma sensação de que ele poderia estar conversando conosco, de pertinho:

“Eu acho que isso é uma coisa que existe, a capacidade de amar é diferente do desejo de amar. Acho que isso é uma coisa que a gente desenvolve e é uma mistura de tudo, de abnegação, de abdicação, de humildade, de reconhecimento… Ser muito autocentrado às vezes faz com que você não veja os outros. E é fácil inventar um amor e achar que tá amando, e viver dessa forma. Difícil é receber o amor de uma pessoa e perceber mesmo o amor que outra pessoa tem por você sem ser da forma idealizada, porque a idealização não tem nada a ver com a pessoa, é você, o que você quer, o que você acha que precisa, que merece. E na verdade receber um amor é receber tudo, é a pessoa, é olhar pra pessoa e não só querer aquilo que você escolhe. Isso é difícil para c******”.

Concordo, Nando. Que continuemos na jornada, com a consciência de que somos muitas/os nessa busca. Que a arte continue a nos inspirar em nossos afetos!

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