Dependência, autonomia e saúde nos relacionamentos

Por Juliana dos Santos Soares

09/06/2020

 

Esse texto é um complemento de dois outros que publiquei já há mais tempo: “O amor e o equilíbrio entre dar e receber” e “Família e a nossa maneira de amar”. Aqui, faço um aprofundamento maior nas dinâmicas de dependência e autonomia em nossa vida relacional.

Parto da abordagem teórica do Psicodrama, que é a que me norteia como psicoterapeuta, numa tentativa de trazer elementos que embasem nossas reflexões sobre relacionamentos, sem ser excessivamente técnica. Tomara que dê certo.

Um dos conceitos centrais da teoria do Psicodrama é o de papel, definido por J. L. Moreno como a unidade psicossocial da conduta. Ou seja, a observação mais simples da nossa forma de estar no mundo é através do desempenho de papéis, e é a partir desse desempenho, desde o início da nossa vida e durante toda a sua extensão, que nós nos tornamos quem somos: o eu emerge dos papéis. É com base nesse conceito de papel que Moreno desenvolve sua teoria das relações interpessoais.

O psiquiatra e psicodramatista argentino Dalmiro Bustos agregou à teoria do desenvolvimento de Moreno suas próprias elaborações, e aprimorou o conceito de agrupamento de papéis (ou clusters), segundo o qual os papéis que desempenhamos na vida se agrupam segundo uma certa dinâmica com características em comum. Vamos a eles:

 

A dinâmica da dependência: Cluster um ou materno

O vínculo gerador desse cacho de papéis é o de filha/o-mãe (ou pessoa que a substitua nessa função dos primeiros cuidados com o bebê). Esse é um vínculo assimétrico, ou seja, não há paridade entre as pessoas que se relacionam; o adulto tem mais poder e responsabilidade. Nessa relação, a dinâmica principal é de completa dependência – ao bebê só cabe receber cuidados, e daí nasce o aprendizado de aceitar as próprias necessidades, saber ser cuidado. É um aprendizado importante para a vida adulta, pois há momentos, no desempenho de outros papéis sociais, em que precisamos de cuidado, devemos conviver de forma saudável com as nossas vulnerabilidades. Dependendo da forma como se vive esse primeiro vínculo, tal dinâmica pode ser incorporada de forma satisfatória. Mas também observamos pessoas que ficam fixas nessa dinâmica de dependência, sem desenvolver adequadamente a autonomia (aquisição da etapa seguinte), ou ainda pessoas que negam a sua dependência, numa tentativa de não ficar à mercê de quem lhes cuida.

 

A dinâmica da autonomia: Cluster dois ou paterno

O vínculo gerador desse cacho de papéis é o de filha/o-pai (ou pessoa que cumpra esse papel). Nessa fase do desenvolvimento há uma passagem gradual da completa dependência para a autonomia: a criança começa a agir no mundo e a compreender que consegue fazer coisas. Enquanto no cluster um o aprendizado era aceitar as próprias necessidades, aqui é reconhecê-las, nomeá-las e administrá-las, indo atrás do que é necessário para atendê-las. Também é o momento de receber limites e aprender a lidar com eles. O vínculo com o pai (ou substituto/a) também é um vínculo assimétrico, e a partir de uma identificação saudável com essa figura que incentiva a criança a crescer,  incorpora-se a dinâmica de poder (verbo), de força, de autonomia, traços que são muito importantes no desempenho de papéis futuros na nossa vida: quando precisamos “ir à luta” pela satisfação de nossas necessidades ou do que desejamos, quando empreendemos ou precisamos assumir papéis de liderança, quando cuidamos de outras pessoas ou instituições. Assim como acontece no cluster um, há quem tenha vivenciado esse vínculo de forma saudável, integrando bem a autonomia na própria vida, e há situações em que essa autonomia é vivida de forma desequilibrada; por exemplo, pessoas que “exageram” na autonomia, negando a dependência que faz parte da vida, ficando autossuficientes e não sabendo como receber.

A dinâmica do compartilhar: Cluster três ou fraterno

O vínculo gerador desse cacho de papéis é o entre irmãs/os ou pares em geral. É onde começamos a criar vínculos simétricos, em que não há uma das pessoas na relação mais investida de poder ou de responsabilidade do que a outra. A principal dinâmica aprendida é a do compartilhar, acompanhada da competição e da rivalidade. É desses vínculos que nasce a construção do NÓS, da coletividade, e isso é importantíssimo para o desempenho da maioria dos papéis que vivenciamos na idade adulta: as relações de amizade, de companheirismo, as relações sociais e as afetivo-sexuais, em que , pelo menos de forma ideal, uma pessoa não deveria ser maior do que a outra. Como se pode deduzir, a vivência madura dessa dinâmica do compartilhar vem da experiência nos dois cluster anteriores. Em nossas relações simétricas nós alternamos entre momentos de maior dependência (em que é importante recebermos cuidados) e de maior autonomia (em que é importante cuidar, com respeito pelo outro), mesmo sabendo que não é uma relação de superioridade e inferioridade entre as pessoas envolvidas.

Um balanço possível, um monte de questões

Bom, esses pontos levantados até aqui já são capazes de estimular uma série de reflexões: como você vive as suas relações de uma maneira geral? Consegue alternar entre as três dinâmicas de papéis de forma saudável? Ou fica mais fixada/o em um dos clusters? Quais são os seus (e os nossos) principais desafios para viver relações mais equilibradas e felizes? O que há de comum entre nós, indivíduos em nossas relações mais íntimas, e nós, enquanto sujeitos de uma dinâmica social mais ampla? É buscando explorar todas essas questões que te convido para a leitura da parte 2 e da parte 3 desse texto.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

Bustos, Dalmiro M. Perigo… amor à vista! Drama e psicodrama de casais. São Paulo: Aleph, 1990.

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