Por Juliana dos Santos Soares
14/10/2020
Este texto nasce por ocasião da Jornada Encontros & Desencontros, que no mês de setembro de 2020 abordou o tema dos relacionamentos abusivos ou tóxicos. A ideia, aqui, é pensar sobre como esperar que um relacionamento amoroso nos complete, suprindo todas as nossas necessidades afetivas, pode ir além de uma coisa muito linda e romântica – pode também nos colocar em perigo de abusos.
Estou sempre falando sobre o ideal de amor romântico – aqui no blog do Ser em Relação tem um monte de textos em que exponho reflexões sobre isso, e deixo alguns deles linkados ao final. E realmente penso que esse modelo de relação traz muitos prejuízos para a nossa maneira de amar na vida real, cotidiana. Existem muitos “fatores de risco” para se estar em um relacionamento abusivo, mas acredito que o próprio ideal de amor romântico merece nossa atenção, porque ele é compartilhado por nós culturalmente.
E por que o ideal de amor romântico é tão perigoso?
- Porque com esse ideal, colocamos o amor em um lugar especial demais, como num pedestal. Como uma fonte suprema de realização e felicidade. O psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu livro Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico, nos traz a ideia de que nós idealizamos nossas/os parceiras/os (e, portanto, nossas relações em si) de uma forma similar à que, em outro momento da humanidade, idealizávamos Deus: fonte de toda a vida, glória e felicidade. O êxtase físico-sentimental que experimentamos hoje substitui o êxtase religioso de outros tempos. E aí, se não estamos felizes e realizadas/os amorosamente, sentimo-nos em situação de fracasso, como se a vida não fizesse sentido.
- Assim, imaginamos que aquela pessoa especial, e somente ela, pode nos fazer felizes e nos completar. É a ideia de “alma gêmea”, de “metade da laranja”, tão disseminada na nossa cultura. Tendemos a esperar que essa pessoa tão especial seja tudo para nós, desempenhando vários papéis que outras pessoas da nossa comunidade poderiam desempenhar e, assim, atendendo a muitas das nossas (muitas) necessidades: sexuais, de amizade e confidência, de compreensão de nossas questões em diversas áreas da vida, intelectuais, de diversão, de aventura, de segurança, de validação de quem somos. Tudo em uma pessoa só. É muito, não acha? Tem que ser mesmo muito especial pra sustentar isso tudo. E, quando se encontra alguém tão especial, melhor não deixar escapar…
- E aqui se torna mais evidente o risco desse ideal para a saúde das nossas relações: uma das manifestações de um relacionamento abusivo é o isolamento de outras pessoas: amigas/os, familiares, grupos de que fazemos parte. A coisa pode ir acontecendo gradualmente, de modo a parecer que tudo de que se precisa está ali, dentro da relação. E aí há o perigo de que, com tanta “completude” e falta de contato com “o mundo externo”, não se saiba o que fazer quando aparecem as diferenças, as tensões, as dificuldades. Fica difícil buscar ajuda – seja pela falta de contato com outras pessoas, seja por temermos “quebrar o encanto” dessa relação, revelando uma realidade que não combina em nada com a imagem que se quer passar.
Como sair dessa?
Com certeza existem maneiras mais saudáveis de viver os relacionamentos amorosos. Exponho aqui, resumidamente, alguns pontos que considero importantes para esse exercício:
- Problematizar a própria vivência amorosa. Questionar-se a respeito das próprias crenças e escolhas a respeito do amor, olhando para elas como uma forma de vivê-lo, mas não a única forma. Muitas vezes guardamos ideais que podem nos ser muito caros, mas não se sustentam na realidade. Embora doloroso, é importante desiludir: tirar ou perder a ilusão.
- Cultivar autonomia emocional. Estando ou não em um relacionamento, buscar não depender da presença de outra pessoa para saber quem se é. Nesse sentido, é importante lidar com a própria incompletude: todas e todos nós temos faltas e carências. Somos incompletas/os por natureza, e não há ninguém que possa preencher esse vazio. Ao invés de buscar essa complementação, podemos trabalhar com a ideia de suficiência: não estou completa/o ou perfeita/o, mas posso ser suficiente para ser digna/o de amor, como sou.
- Cuidar das nossas relações sociais, diversificar e democratizar nossas fontes de afeto: amizades, família, grupos sociais, nossa comunidade, palavra que tem estado tão “fora de moda” no mundo das relações. Temos estado muito sós, restringindo nossos contatos ao que nos proporcionam os dispositivos eletrônicos, em redes que chamamos de sociais, mas que na maioria das vezes não cumprem essa função social, de nos colocar em contato, em relação. Lembrar que numa comunidade existem muitas pessoas para nos relacionarmos, para olharmos no olho e seguirmos de mãos dadas, numa rede de afetos e apoio. Ninguém pode nos dar tudo de que precisamos, mas podemos nos nutrir afetivamente, um pouquinho em cada relação. E ser fonte de afeto para outras pessoas também.
REFERÊNCIAS E INDICAÇÕES:
Tive uma conversa super interessante com a Anna Cláudia Eutrópio, psicóloga que desenvolve um trabalho lindo de educação em Sexualidade pelo Nós e Voz, sobre o tema “Pra quê rimar amor e dor?”. Ali nós falamos muito sobre o tema desse texto. Se quiser conferir, no Youtube, clique aqui.
O livro do Jurandir Freire Costa que citei está esgotado. Mas recomendo seu artigo “As práticas amorosas na contemporaneidade” in: Psychê – Revista de Psicanálise, Ano III., Nº 03, São Paulo, 1999. Mais fácil de achar na internet.
Além disso, recomendo muito sua conferência no Café Filosófico, com o título “Democratizar o amor e a amizade”, disponível no Youtube. Para assistir clique aqui.
Textos que já publiquei aqui no Ser em Relação, sobre o ideal de amor romântico:
Muito bom!
O amor romântico é de fato um perigo; é como “o conto do vigário”, uma armadilha sedutora.
Sim, Dolores.
Sempre muito bom trocar com você.
Obrigada!
Ótima reflexão. Foi maravilhoso ter participado do encontro. Obrigada!!!
Obrigada pelo retorno, Kássia!
É sempre bom estarmos juntas nessa jornada de reflexões.
Beijos!