Por Juliana dos Santos Soares
11/11/2020
Em outubro de 2020 o tema da jornada Encontros & Desencontros, sobre relacionamentos amorosos, foi “Família, família…”: Relacionamentos amorosos quando temos filhos/as. Trago aqui algumas reflexões vindas da vivência online, um encontro em que estiveram presentes algumas mulheres, todas mães.
Nesse encontro o grande tema protagônico foi uma personagem que, surgindo das interações do grupo na etapa de aquecimento, representou a todas: A mulher apagada. Fizemos uma dramatização em que cada participante teve oportunidade de desempenhar um pouco esse papel, em uma construção coletiva. Vamos a ela:
Quem é a mulher apagada? É uma mulher que se sente realizada e plena de amor no seu papel de mãe, mas que no papel de sujeito do amor, de amante, não sente o mesmo brilho. Está cansada e sobrecarregada pelo excesso de papéis desempenhados na vida, preocupada, carregando muito peso. Ela realiza muitas coisas, e muitas vezes sente-se feliz com isso. Mas está exausta. Apagada.
Do que ela precisa? Em primeiro lugar, surge a necessidade de comunidade. Lembrando daquele provérbio que diz “é preciso toda uma aldeia para educar uma criança”, a mulher apagada declara que o casamento e a maternidade, como os vivemos hoje, trazem isolamento; ela expressa a necessidade de espaços coletivos, em que possa se sentir parte de um grupo, inclusive compartilhar sobre o assunto. Traz a necessidade de ser aceita, vista e ouvida como é, como está, como se tornou com o tempo. E, por fim, a mulher apagada nos conta que precisa voltar a brilhar, mas não da forma como já brilhou um dia: um brilho de holofotes, de muito destaque e exuberância. O brilho de que precisa é mais sossegado, com equilíbrio.
********
Essa personagem traz consigo uma série de emoções e reflexões. Fica evidente a sobrecarga que experimentamos, especialmente nós mulheres, com o acúmulo de papéis que desempenhamos socialmente: conjugar vida profissional e doméstica, papel de mãe e de sujeito de amor, entre tantos outros, é muito, muito pesado. Em algum momento chega a exaustão. A sensação de insuficiência. Precisamos de ajuda, urgentemente. E os espaços coletivos, como esse mesmo da vivência, são um respiro.
Quero destacar um ponto que muito me tocou na condução desse encontro: a questão do brilho. Na vivência do mês anterior, dramatizamos a história de alguém que brilhava como uma estrela, mas esse era um brilho pesado, que lhe colocava num lugar muito especial, e com isso abria brechas para abusos nas relações[1]. E no encontro desse mês prosseguimos com o tema. Surge a mulher apagada, sentindo-se sem brilho algum no seu papel de amante. Teria toda a sua luz ido para o papel de mãe? Ou sido dissipada (ou soterrada) no meio da correria e do acúmulo de papéis e funções? Ela quer, e precisa, voltar a brilhar. E não lhe interessa aquele brilho de destaque e holofote, que lhe faz mais brilhante e especial do que outras pessoas mas é muito cansativo. Em suas próprias palavras, ela precisa de um brilho com equilíbrio.
Repito aqui o que escrevi um mês antes, quando refletia sobre a cena da estrela:
Nós não precisamos ser especiais. O que precisamos é ser amadas/os, vistas/os, reconhecidas/os, respeitadas/os. Nos sentirmos pertencentes. E, para pertencer, não precisamos nos destacar. Precisamos nos relacionar – olho no olho, face a face. Sem destaque, com proximidade e presença.
Tudo isso me lembra muito a canção Gente, do Caetano Veloso, em que ele nos canta que “gente quer luzir”, “gente é pra brilhar”. E é GENTE, com um monte de nome de gente, sem um destaque maior para alguém. “Gente pobre arrancando a vida com a mão”, sem especialidades. É o espaço do coletivo, como reivindicado pela nossa mulher apagada que quer brilhar de um jeito mais equilibrado. Não depende apenas de nós, individualmente, mas também de uma organização social que, infelizmente, se organiza com base na desigualdade e opressão. Mas refletirmos a respeito já nos dá força para buscarmos mudanças, em algum nível. Deixo aqui essa belíssima canção, com o desejo de que possamos brilhar! Brilhar, amorosamente. Nós e todas, todos e todes ao nosso redor. Afinal, “se as estrelas são tantas, só mesmo o amor”…
[1] Eu compartilhei essa história no texto Relacionamentos abusivos e o perigo de ser especial. Sugiro muito a leitura, pelas conexões com esse texto aqui.