Por Juliana dos Santos Soares
30/07/2018
Entretenimento ou reflexão? Às vezes nos vemos no limite, atravessando uma ponte, brincando de vai-e-volta nela. E às vezes a arte ajuda a, mesmo na fantasia, construir pontes onde só há pontos extremos.
Um mundo dominado pelas mulheres. Onde somos o “sexo forte” e por isso a natureza nos escolheu para dar à luz. Onde dominamos e oprimimos homens, “naturalmente”. Onde eles sofrem pressão social por beleza, sucesso no amor (leia-se: casamento) e filhos. Depilam-se e produzem seus corpos, num limite delicado entre ser belos para o outro e sentir-se bem consigo, buscando um bom tom que não os deixe vulneráveis a abusos sexuais. Eles são sensíveis, pedem por amor e sentem-se inseguros quando uma mulher “brinca com seus sentimentos”. Sim, nesse mundo nós somos “naturalmente” esquivas, não demonstramos nossos afetos. Temos certeza de que somos superiores a eles. Isso justifica tudo.
Ao assistir “Eu não sou um homem fácil”, meu olhar vai mudando gradativamente. O cara bate a cabeça num poste (que metáfora!) e passa do nosso mundo machista, onde era um abusador, para esse outro universo – “femista”? – em que se sente vítima.
A inversão de papéis, essa ferramenta revolucionária, possibilita me colocar no lugar do outro. Ver o mundo com seus olhos, saber o que essa pessoa vive, conhecer o seu mundo. Sentir as suas dores. Mais do que isso, permite-me ver a outra pessoa tomando o meu lugar, e eu me vejo com os seus olhos, como num espelho privilegiado. Quem dera usássemos mais esse recurso em nosso louco mundo.
A maximização, em caricaturas e clichês, mostra o ridículo da cultura que compartilhamos e (ainda) reproduzimos.
Vejo corpos de mulheres à vontade, abertos, ocupando espaço como se constantemente estivessem em casa. Aquele mundo é a sua casa. Os corpos masculinos, mais acanhados, buscando adequar-se ao que pode e ao que não pode, parecem pedir licença a todo momento. Como dizemos quem somos e que lugar ocupamos, não apenas com nossas falas, mas como nosso corpo, nosso olhar, nosso tom de voz?… O que meu corpo diz sobre mim e sobre minha história?… O que o seu corpo diz?…
Vejo um envolvimento amoroso em que ele começa “por cima da carne seca”, com sua mente configurada num mundo machista, mas isso não funciona nesse universo paralelo. Do outro lado da relação há ela, uma figura sexista, seu espelho perfeito. “Normalmente eu tento me livrar das mulheres, mas com ela, eu fico com medo de que ela suma”. Surge a insegurança, a exposição de sentimentos, o pedido, aberto ou implícito, por proximidade emocional… Quantas vezes já me vi nessa situação? Quantas vezes já testemunhei amigas e outras mulheres contarem suas histórias com esse enredo? Não saberia quantificar…
Somos construção social e relacional. Na infância, Damien quis ser a Branca de Neve. Naturalmente, ele não via essa divisão de papéis. Foi se transformando em quem se mostra para nós.
No final do filme, ele e ela estão no nosso mundo. Ela, atônita. Meu olhar, junto com o seu, novamente se assusta, ao rever nosso mundo depois dessa viagem. Ele surge, de um outro lado. Seria a sua postura a de um apoio? De “bem-vinda ao meu mundo”? De uma ponte entre os mundos? Fico sem saber. Sei que ainda somos muito inexperientes em criar pontes, em construir um mundo em que homens e mulheres se apoiem.
Até que avancemos mais, continuamos a precisar do feminismo.
Ressonâncias são reflexos, repercussões de um estímulo em outros corpos ou sistemas. Aqui, trata-se de como algo chega até alguém: o que gera? Sentimentos, reflexões, texto, poesia… Minhas ressonâncias do filme “Eu não sou um homem fácil ” (Je ne suis pas un Homme Facile, 2018, da diretora Eléonore Pourriat – disponível na Netflix). E em você, o que esse filme gera? Deixe nos comentários!
Sinopse do filme (por Netflix): Um machista inveterado prova de seu próprio veneno ao acordar em um mundo dominado por mulheres, onde entra em conflito com uma poderosa escritora.
Imagens: Divulgação