Por Juliana dos Santos Soares
02/11/2011
Estás disposto a ser suprimido, apagado, extinto,
transformado em nada?
Estás disposto a transformar-se em nada?
Se não estiveres, nunca mudarás de fato…
D. H. Lawrence
Feriado: Dia de finados. Aqui no Brasil temos a fama de adorar os feriados por causa das folgas extras no trabalho. Mas qual é o significado deste feriado? Por que temos uma data dedicada àqueles que já estiveram entre nós e não estão mais? E como nós, que permanecemos na vida, lidamos com esse aspecto dela – a morte? Percebo ao meu redor uma tendência a não olhar pra ela, e quem olha, especialmente no Dia dos Mortos, normalmente o faz de uma maneira por demais melancólica. O dia fica com uma aura de dor e lamentação por aqueles que já se foram, como se as pessoas devessem permanecer vivas para sempre.
Temos uma grande inclinação para o APEGO, a nos mantermos de braços dados com pessoas que já se foram, com coisas, relações e circunstâncias que já são passado em nossa existência, com quem nós mesmos já fomos e não somos mais. Nitidamente resistimos à morte – à morte física e ao final dos ciclos na vida. A última edição da revista Isto é trouxe uma entrevista com o futurista Ray Kurzweil, que prevê, com alegria, que a vida humana poderá se estender de maneira quase ilimitada a partir de 2036. Segundo a entrevista esse homem toma 150 vitaminas e suplementos por dia! Nosso terror a deixarmos esse mundo chega a níveis ao mesmo tempo cômicos e assustadores – e é REAL.
Ou então vamos para o outro extremo (porque o ser humano é assim): para “naturalizar” a relação com a morte e as perdas, tornamos todas as coisas e relações efêmeras e nos intitulamos “desapegados”. Assim, as pessoas passam pelas nossas vidas, e nós pelas delas, numa velocidade altíssima e nem nos olhamos direito, não nos entregamos verdadeiramente às relações, no intuito – consciente ou inconsciente – de não sentirmos sua falta um dia, o que é caracterizado com expressões como “a fila anda”. Ou ainda: diminuímos o valor das relações depois que elas terminam, dizendo que “o fulano nem valia a pena mesmo”, para não sentirmos a dor do vazio que fica no final. São faces de uma mesma moeda, em que evitamos tenazmente lidar com a possibilidade da perda, de deixar de ter o que e quem “temos”, de deixar de ser quem somos.
Mas eu acredito que nos faria muito bem olhar para a morte de uma maneira mais natural, autêntica e – por que não? – otimista. Ela é certa. Implacável. E acontece a todo momento. Há os que deixam essa vida e há os que permanecemos nela (por enquanto) e que matamos e morremos a cada dia. Nos alimentamos de seres – animais ou vegetais – que já estiveram vivos e morreram para que continuemos vivos. Nosso corpo físico se renova constantemente, nas células que morrem e noutras que nascem. Abraçamos ideias e crenças com afinco numa fase de nossa vida, para vermos, algum tempo depois, aquilo se distanciar de nós. Morreu. Deixou algo de bom – sim, normalmente o que fica um pouco e vai embora deixa algo bom – e passou. Nos mantemos em relacionamentos amorosos, amizades, empregos e parcerias que depois de algum tempo já não têm sentido, ou pelo menos não da maneira como já foi; as coisas precisam se renovar – algo precisa morrer para que o novo nasça. E nós, muitas vezes, nos fixamos mais no fato da pessoa, ideia, ou relacionamento ter ido embora do que nas marcas deixadas, no quanto foi bom, prazeroso, engrandecedor.
Há um filme belíssimo que aborda o tema: A partida (2008), vencedor do prêmio de melhor filme estrangeiro no Oscar 2009. Nele, Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki) é um violoncelista que vê a orquestra em que toca se desfazer – o que já representa o fim de um ciclo, uma morte – e volta para sua cidade natal. Passa a trabalhar com o ritual do Nokan: preparação e acondicionamento do corpo no caixão. Por ser um trabalho intimamente ligado à morte, todos ao seu redor o vêem com maus olhos e afastam-se, exigindo que ele “arrume algo decente pra fazer”. É o horror à morte… Mas Daigo observa que, durante o ritual, as pessoas que vivem despedem-se, de fato, dos seus queridos e resolvem questões importantes com eles. Não vou me delongar a respeito do filme – todos merecemos assisti-lo e ele fala por si –, mas o que quero trazer com ele é a importância de incluirmos em nossas vidas a morte e o que ela envolve, nos despedirmos daquilo e daqueles que se vão, dando-lhes o devido valor, enterrá-los, vivermos o luto, sentirmos o vazio, chorarmos o que precisa ser chorado até passar, e tocarmos nossa vida em frente. Já presenciei não poucas situações em Psicoterapia em que o que a pessoa precisava para se curar era de uma boa despedida que não pôde ser feita em outro tempo, às vezes ritualizada com um enterro simbólico.
Que possamos olhar para a Morte. Não só no tal feriado, mas todos os dias. Não precisamos encará-la de frente, numa postura desafiadora, porque um certo respeito é importante com algo tão sério. Mas olhemo-la, com cuidado, talvez meio de soslaio. Pode ser que nos deparemos com algo importante que ela possa nos ensinar para a Vida. Que, incluindo a Morte, a Vida possa ser vivida com mais inteireza. E que assim possamos dar um lugar justo, de honra, respeito e alegria, a tudo e a todos que já passaram por nossa caminhada e se foram.